Repúblicas de estudantes: passado sem futuro?

(texto publicado no Diário de Coimbra de 8 de setembro de 2023)

No início de cada ano letivo dá-se a grande renovação anual dos estudantes: os que terminaram já não voltam, mas o seu lugar é preenchido pelos muitos que chegam de novo, num contínuo rejuvenescimento que faz parte da natureza profunda das escolas. 

Em Coimbra, um dos elementos mais tradicionais da comunidade que os recém-chegados vêm encontrar são as repúblicas de estudantes. São muito valiosas, não apenas por serem específicas de Coimbra, com uma longa tradição histórica, mas também por serem uma experiência de vida comunitária, muito independente, com grande latitude de ação. São, em regra, verdadeiras escolas de vida, complementares da aprendizagem formal das salas de aula e dos laboratórios. 

Mas, surpreendentemente, há muito que não surgem novas repúblicas. Tanto quanto sei, a república mais recente é a das Marias do Loureiro, criada em meados dos anos 80 e reconhecida como república apenas em 2003. É preocupante, pois significa que há vinte anos que não há novas repúblicas em Coimbra, apesar de nunca ter havido tantos estudantes no Ensino Superior na cidade. Será que os estudantes deixaram de ter iniciativa? 

Não foi sempre assim. Desde pelo menos os anos trinta do século passado, em todas as décadas se formaram novas repúblicas, sendo a década de 50 porventura o período mais ativo. Haver 20 anos sem novas repúblicas não tem precedente histórico nos últimos 100 anos, pelo menos. 

Há, seguramente, muitas razões para este facto, mas, no meu entendimento, uma grande responsabilidade cabe ao Conselho de Repúblicas, que "aprova" as novas repúblicas seguindo regras muito restritivas. 

Nos primeiros tempos do século passado não havia qualquer processo de aprovação de repúblicas. Uma comunidade estudantil declarava-se república, sem processos nem burocracias. Dependia apenas da vontade dos próprios. Só a meio do século passado é que se formou o Conselho das Repúblicas, como forma de tentar defender a continuidade das repúblicas perante as demolições da alta. Nessa altura participavam no Conselho as repúblicas que queriam assumir o risco, pois o Conselho era independente do Governo, o que numa ditadura tem sempre um risco elevado. 

Depois do 25 de Abril a situação mudou. Pertencer a uma república deixou de ser um risco para ser uma vantagem, quer pelo peso político acrescido que tinha a sua voz, quer pelas vantagens que lhes foram sendo dadas, por exemplo na manutenção de rendas baixas e no acesso a alimentos a preços mais baixos. 

Mas o mais grave é que o Conselho das Repúblicas deixou de ser um órgão democrático, pois - o que muitos porventura desconhecem - deixou de decidir por maioria, como era antes do 25 de abril, para decidir por unanimidade. Isto significa que, para surgir uma nova república, ela tem de recolher um voto favorável unânime de todas as repúblicas existentes. Ora, como muitas delas têm, em determinadas fases, posições políticas muito intensas, oferecem grande resistência a aprovar repúblicas novas onde não vejam as suas ideias espelhadas. Acresce que o processo é muito longo: primeiro uma casa de estudantes tem de ser reconhecida como solar, e só depois é aceite como república. No caso da última aprovada, a Marias do Loureiro, o processo demorou mais de 10 anos. O reconhecimento de uma nova república é um processo burocrático/político de "licenciamento" dos mais longos que existem em Portugal. Não admira que, nos últimos 20 anos, não haja qualquer república nova. A república mais recente foi criada há cerca de 40 anos! 

O processo de decisão por unanimidade resulta em perversões variadas. Por exemplo, se uma casa que albergava uma república deixar de ter estudantes, como aconteceu em vários casos, deveria deixar de ser reconhecida como república de estudantes. Mas, para isso acontecer, tem de haver um voto unânime no Conselho das Repúblicas. Isto é, para uma casa que já não tem estudantes deixar de ser reconhecida como república de estudantes tem, ela própria, de votar a favor dessa decisão. Dados os privilégios das repúblicas, não conheço nenhuma que o tenha feito. Daqui resulta que a lista de repúblicas aprovadas pelo Conselho não garante sequer que tenham estudantes. Não faz sentido. 

Lembro-me de, há alguns anos, ter comentado com o Dr. Alberto Martins, o grande protagonista de revolta de 1969, que esta regra da unanimidade me parecia inexplicável. Da conversa resultou uma constatação muito simples: se essa regra já existisse em 1969 não teria havido revolta dos estudantes pois, na altura, nem todas as repúblicas votaram a favor dos protestos. A maioria votou a favor, e essa posição ganhou democraticamente, mas não foi unânime. 

Espero que o Conselho das Repúblicas saiba alterar a sua forma de atuar, abrindo o ferrolho que tem imposto aos estudantes, para que estes, com a dinâmica inovadora que os caracteriza, possam voltar a organizar-se em repúblicas se assim o quiserem, em formatos porventura mais adaptados aos tempos atuais, sem imposições de modelo. 

 
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