Afeganistão 2.0
(Texto publicado no Diário de Coimbra de 2025-02-07)
A saída dos Estados Unidos do Afeganistão, em setembro de 2021, foi um desastre. Não apenas porque os Taliban voltaram ao poder, quando o seu afastamento tinha sido o objetivo da invasão em 2001, como porque foi feito de forma atabalhoada, com cenas de pânico incríveis no aeroporto de Cabul. Foi em resultado dessa debandada que a popularidade do Presidente Joe Biden ficou negativa, e nunca mais recuperou.
Mas Joe Biden apenas cumpriu o acordo de paz entre os Taliban e os EUA que tinha sido assinado em Doha em fevereiro de 2020, na sequência de negociações diretas conduzidas por Donald Trump. Essencialmente continha o compromisso de os Taliban não voltarem a acolher movimentos que tivessem por objetivo atacar os EUA e seus aliados, e os EUA comprometiam-se a retirar todas as tropas estrangeiras do Afeganistão. Na frente interna não se acordava nem cessar-fogo, nem qualquer acordo político para a governação do Afeganistão, matérias que eram deixadas para mais tarde.
Há grandes semelhanças na forma como Donald Trump tratou a guerra no Afeganistão e está agora a tratar a guerra na Ucrânia.
Em primeiro lugar, negoceia diretamente com o inimigo, sem a participação dos governantes do país em guerra. O governo afegão não esteve presente em Doha, tal como o governo ucraniano não esteve presente na Arábia Saudita nas negociações diretas com a Rússia de fevereiro passado.
Em segundo lugar, basicamente cede em praticamente tudo ao que o inimigo pretende, dando muito pouca importância aos problemas dos seus aliados. No Afeganistão a história provou, muito rapidamente, que o governo afegão tinha razão: a saída dos EUA daquela forma resultaria numa tomada de poder, violenta, dos Taliban. Na Ucrânia é também manifesto que Trump dá pouca importância ao destino dos ucranianos, recusando-se a dar quaisquer garantias de segurança, essenciais para que haja uma paz duradoura.
Em terceiro lugar, usa de enorme pressão para impor aos seus aliados uma resolução da guerra que é basicamente uma capitulação. Repare-se que tem até dificuldade em admitir que foi a Rússia que iniciou a guerra, e nada o preocupa que o direito internacional tenha sido profundamente violado, a começar pela inviolabilidade das fronteiras reconhecidas internacionalmente.
O Secretário de Estado americano em 2020, Mike Pompeo, fez uma rápida visita em março de 2020 ao Afeganistão e anunciou um corte de 1000 milhões de dólares na ajuda americana, com possibilidade de haver mais cortes se o governo afegão não aceitasse os termos do acordo, tendo este acabado por ceder. Agora, como é conhecido, Trump suspendeu toda a ajuda militar à Ucrânia, tendo pouco antes já suspendido a ajuda civil, para forçar a Ucrânia a aceitar os termos da capitulação que está a negociar com os russos.
Felizmente há muitas diferenças entre a situação do Afeganistão e da Ucrânia, que dão alguma esperança de que o desenlace final seja diferente.
Por um lado, os ucranianos querem um regime democrático de modelo ocidental, ao contrário do povo afegão. Por outro, enquanto o governo afegão dependia a 100% do apoio dos EUA, na Ucrânia estes apenas contribuem com cerca de um terço do armamento, embora tenham um papel atualmente não substituível na defesa antiaérea contra mísseis balísticos. Por outro ainda, porque a luta pela independência dos povos tem uma enorme força mobilizadora, que os Taliban usaram para lutar contra o invasor americano, e os ucranianos usam para lutar contra o invasor russo.
Ser aliado dos EUA, com Trump, é um perigo grave. Esperamos que a Europa acorde e perceba que tem de ser capaz de, sozinha, tratar da sua defesa, sendo que a frente de batalha da defesa da Europa, e do nosso modo de vida com liberdade, está neste momento na Ucrânia.
Ficheiros
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