(texto publicado no Diário de Coimbra de 6 de outubro de 2023)

Os regimes ditatoriais vão prevalecer, pois usam a força bruta sem limites? Ou os regimes democráticos acabarão por afirmar a sua liderança, pois graças à liberdade individual que dão, todos contribuem para o progresso da sociedade, ao contrário das ditaduras onde poucos podem pensar? 
Isto é, podemos aspirar a ser livres, ou vamos inevitavelmente ser escravos, carne para canhão? Em tempos de guerra de grande escala, protagonizada pela ditadura fascista russa que invadiu a Ucrânia, cresce a ansiedade sobre o destino da humanidade. 

Estas angústias têm um peso maior se acreditarmos que a evolução das formas de organização da sociedade decorre de acordo com uma sequência fixa. Muitos defendem que, à medida que as sociedades dominam técnicas mais complexas, as suas formas de organização evoluem em consonância. É o determinismo histórico: a nossa vontade coletiva não tem grande influência na organização da sociedade, pois esta resulta, no seu essencial, do nível de desenvolvimento técnico e económico. 

Segundo este determinismo, as sociedades humanas, ao evoluírem, passam por um conjunto obrigatório de fases. Começaram por ser apenas bandos de caçadores recoletores, pequenos e igualitários, que evoluem para tribos, surgindo com o desenvolvimento da agricultura os estados, sociedades burocráticas, hierárquicas e complexas, com classes dominantes e dominadas. 

Será mesmo assim? Podemos apenas tentar compreender qual é nosso destino coletivo, mas não mudá-lo? 

Para testar a validade do determinismo histórico podemos olhar para o passado para verificar, por exemplo, se foi realmente a descoberta da agricultura que trouxe a hierarquização e a desigualdade à sociedade, e se antes da agricultura a sociedade humana era composta apenas por bandos ou tribos igualitárias. Nos últimos decénios a Arqueologia tem descrito muitas civilizações antigas, que permitem fazer este teste. 

Um trabalho relevante para este efeito tem sido conduzido desde há muitos anos, no norte do Iraque, pelo Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra, que estuda Kani Shaie, uma localidade com presença humana comprovada desde há cerca de 8000 anos. Verificou-se aí que, após a descoberta da agricultura e a criação das primeiras cidades na região, afinal houve um período longo em que se voltou a uma organização baseada em pequenas povoações, muito igualitária, mas mesmo assim sofisticada. Este exemplo mostra que a organização baseada em cidades afinal não é inevitável, após a agricultura. 

Há outros casos que indiciam que também a hierarquização não é um resultado inevitável da agricultura. Por exemplo a grande cidade de Talianki, na atual Ucrânia, anterior à própria Mesopotâmia, era altamente igualitária, embora agrícola, e durou quase mil anos. Um livro que descreve Talianki e é extremamente interessante para esta discussão é "The Dawn of everything - A new history of humanity" (David Graeber, David Wengrow - 2021).  
Neste livro são também descritas inúmeras sociedades anteriores à agricultura que mostram grande complexidade, sem nada terem a ver com a ideia de pequenos bandos igualitários, p.ex. Poverty Point, na atual Louisiana, EUA, e Göbekli Tepe, na atual Turquia. Ou a civilização Calusa, que os espanhóis encontraram no século XVI na atual Flórida, EUA, e que era um reino altamente hierarquizado, mas não conhecia a agricultura. 

Em resumo, os dados arqueológicos invalidam a teoria do determinismo histórico, o que nos liberta, pois mostram que o devir da humanidade depende da nossa vontade coletiva. A nossa organização social pode ter as formas mais diversas, não estando predeterminada por automatismos que nos ultrapassem. Temos liberdade para escolher a democracia e a liberdade individual, e para nos opormos às ditaduras, mas também uma enorme responsabilidade: a luta contra os exércitos invasores e as forças totalitárias, como atualmente na agressão russa à Ucrânia, é de todos nós, todos os dias.