A religião e a barbárie

(Texto publicado no Diário de Coimbra de 1 de dezembro de 2023)

Todos nós assistimos ao massacre de 7 de outubro passado, brutal e indiscriminado, perpetrado pelo Hamas contra civis israelitas e de inúmeras outras nacionalidades, incluindo a portuguesa. Assistimos à tomada de reféns, desde bebés a idosos, de forma igualmente indiscriminada. Em todo esse dia foi constante a invocação de Deus: "Allahu Akbar" - Alá é grande. Esta expressão foi gritada quando estavam a assassinar, a sangue frio, pessoas indefesas, ou a lançar granadas para locais onde civis se refugiavam, aterrorizados, ou ainda quando exibiam nas ruas os corpos dos assassinados, ou os reféns capturados. 

A declaração de princípios original do Hamas, publicada em 1988, tem como primeiro título "Em nome de Alá, o Misericordioso", e a primeira frase é "Sois a melhor nação que se tem levantado para a humanidade: ordenais o que é justo e proibis o que é injusto, e credes em Deus."  A versão atual, publicada em 2017, mantém esta perspetiva, começando com "Louvado seja Alá, Senhor de todos os mundos. Que a paz e as bênçãos de Alá estejam sobre Maomé, o Mestre dos Mensageiros e líder dos guerreiros da guerra santa, e sobre a sua família e todos os seus companheiros." 

Como se pode mostrar tanta desumanidade em nome de um Deus que se diz ser misericordioso e trazer a paz? Não é de agora que este contraste nos é dolorosamente visível. Já há muito me choca, profundamente, ver bombistas suicidas a desrespeitar a sua própria vida, ao fazerem-se explodir no meio de multidões de civis, matando pessoas inocentes que não conhecem. Esta cegueira religiosa também já matou imensos muçulmanos, como no massacre de 7 de outubro, que não chacinou só judeus. 

Também em nome de outras religiões já se cometeram enormes barbaridades. Lembremos na religião cristã, entre muitos outros exemplos, a inquisição. Noutras religiões há também inúmeros episódios similares, de barbárie absoluta. 

A frequência com que a religião resulta em chacina mostra que a religião tem de ser uma opção individual, de liberdade íntima, que não se pode impor à força a ninguém. Não pode haver exércitos à ordem da religião. Sempre que o Estado e a Religião se confundem, a probabilidade de massacres aumenta, pois são perpetrados por quem pensa possuir a verdade absoluta. 

É por tudo isto que cada vez dou mais valor ao caráter laico do Estado Português. É algo recente: a separação entre igreja e religião só aconteceu com a instauração da República em 1910. Mesmo após a revolução liberal do início do século XIX, que resultou por exemplo na extinção das ordens religiosas em 1834, Portugal não se tornou um Estado laico. A Carta Constitucional de 1826, que vigorou, com pequenas interrupções, até à instauração da República, dizia logo a abrir, no Artigo 1º: "A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Reino. Todas as outras Religiões serão permitidas aos Estrangeiros com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo." Só aos estrangeiros era permitido ter outra religião; os portugueses não tinham escolha e tinham de ser cristãos católicos. 

Felizmente, a atual Constituição da República Portuguesa afasta a religião do Estado: "As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado" e consagra a liberdade religiosa individual: "A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável." Isto significa, por exemplo, que ninguém pode impor a ninguém, nem aos seus descendentes ou cônjuges, qualquer crença religiosa. 

Considero que esta colocação da religião no âmbito da consciência de cada um é um salto civilizacional de transcendente importância, como os recentes acontecimentos demonstram. 
A Constituição reconhece-o também, pois coloca a separação entre a religião e o Estado na lista dos "Limites materiais da revisão", isto é, na lista dos princípios, como a independência nacional, que nem uma revisão constitucional pode mudar.  

Mas não nos podemos distrair, pois a separação entre religião e Estado é um bebé ainda frágil, que tem de ser defendido a todo o custo. Em nome do respeito pela vida.

 
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