Legítima Defesa

(Texto publicado no Diário de Coimbra de 7 de junho de 2024)

Há uma cidade europeia com mais de um milhão de habitantes onde têm caído quotidianamente bombas e mísseis, a cidade ucraniana de Kharkiv. É imenso o nível de destruição e morte que daí resulta. Paradoxalmente, a Ucrânia até dispõe de armas que lhe permitiriam defender-se da maior parte desses ataques, mas os países ocidentais que as fornecem impuseram restrições ao seu uso.

O problema é que Kharkiv está a apenas cerca de 30 km da fronteira com a Rússia, o que permite que os ataques sejam lançados a partir do território russo. Ora, com medo de provocar uma escalada na guerra, muitos países ocidentais, com os Estados Unidos à cabeça, têm impedido os ucranianos de usar em território russo as armas que lhes entregaram.

Os métodos de ataque mais perigosos a Kharkiv que os russos têm usado são dois.

O primeiro são mísseis S300, originalmente desenvolvidos para defesa antiaérea, mas que também podem ser usados em ataques contra o solo. Como a Rússia herdou uma grande quantidade desses mísseis da União Soviética e eles se têm revelado muito pouco eficazes contra os aviões e mísseis atuais, a Rússia usa-os contra alvos terrestres. É muito difícil intercetar os S300 depois de lançados. A melhor forma de os neutralizar é destruir os sistemas de lançamento. Foi isso que a Ucrânia fez: apenas dois dias depois de receber autorização dos EUA, há cerca de uma semana, para os usar em solo russo (mas apenas na região envolvente a Kharkiv), a Ucrânia usou mísseis americanos Himars (solo-solo) para destruir os lançadores S300 o que resultou na imediata paragem do lançamento destes mísseis contra Kharkiv. Quantas vidas se teriam salvo se esta restrição não tivesse existido!

O segundo método de ataque dos russos, e o mais perigoso, são as bombas planadoras. São uma modificação simples das clássicas bombas do tempo da segunda guerra mundial, que a Rússia também herdou da União Soviética em grande quantidade, às quais foram acrescentadas umas asas pequenas que permitem planar, e um sistema simples de guiamento. Não têm motor mas, como são lançadas a partir de aviões, podem ser largadas a dezenas de quilómetros de distância do alvo. Na segunda guerra mundial teriam de ser deixadas cair por aviões a voar por cima do alvo. Com esta modificação, Kharkiv pode ser bombardeada sem que os aviões que as lançam precisem de entrar na Ucrânia.

Intercetar bombas planadoras em voo é possível, mas inviável, pois as bombas são baratas e os mísseis intercetores muito caros. É o avião que precisa de ser abatido no ar, ou, de preferência, em terra. A arma principal disponível contra os aeroportos num raio de 300 km são os mísseis solo-solo ATACMS, mas infelizmente, o uso destes contra o território russo ainda não foi autorizado pelos americanos. 

Para abater os aviões lançadores de bombas no ar, os ucranianos precisam de sistemas de defesa antiaérea, em que o principal é o sistema americano Patriot. Ora, só no dia 4 de junho passado, pela primeira vez, o governo americano anunciou que o Patriot pode ser usado para abater aviões de guerra russos que estejam no espaço aéreo russo. Os ucranianos vão seguramente tentar fazê-lo, mas não têm sistemas Patriot em quantidade suficiente para cobrir toda a frente de batalha, que tem mais de 1000 km. 

É-me incompreensível que seja preciso decorrerem mais de dois anos para se perceber o óbvio (e, para já, apenas parcialmente!): os ucranianos têm de poder disparar contra os russos que os atacam, estejam onde estiverem, em solo ucraniano ou russo. Dar armas à Ucrânia e depois não a deixar usá-las contra alvos em solo russo é como dizer a uma pessoa, que se está a defender de uma agressão física, que tem de lutar com uma mão atrás das costas enquanto o atacante usa os dois braços. As muitas restrições ainda existentes ao uso das armas de que os ucranianos dispõem têm de ser levantadas imediatamente, para que mais depressa a invasão russa seja derrotada.

 
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