Safari de caça aos humanos
(texto publicado no Diário de Coimbra de 7 de novembro de 2025)
Larysa Vakulyuk, mais conhecida por avó Lora, de 84 anos, dizia no início de setembro deste ano à jornalista Zarina Zabrisky que a casa dela havia sido destruída (tal como quase todas as casas em redor da sua), mas que não podia ir-se embora, porque era pastora e tinha 20 cabras para cuidar. «Não tem medo?» inquiria a jornalista. Respondeu perguntando o que tinha a temer, com a sua idade, embora reconhecesse que todos os pastores de vacas já tinham sido mortos pelos russos. Que as pessoas que ficaram, que já só têm galinhas, têm medo mas também têm esperança. Que não se vão embora porque querem estar junto do que é seu.
Habitante de Kherson, no sul da Ucrânia, Larisa Vakulyuk morreu no passado dia 20 de outubro, vítima de uma granada largada sobre ela por um drone russo. Com ela morreram as duas cabras que a acompanhavam. As outras 18 dificilmente terão outra pessoa que delas cuide.
A avó Lora foi mais uma vítima do assassinato sistemático de civis por parte do exército russo, presente a poucos quilómetros de Kherson, do lado sul do rio Dnipro. Os drones russos sobrevoam continuamente o norte do rio, e atacam todos os civis. O sentimento de impunidade dos russos é tão grande que são eles próprios a publicar nas redes sociais muitos vídeos desses ataques.
A jornalista Zarina Zabrisky chamou a essa selvajaria russa "safari humano", descrevendo-a pormenorizadamente num documentário chamado "Kherson Human Safari", disponível https://khersonhumansafari.com/.
As Nações Unidas confirmam esta atuação do exército russo. O Secretário Geral das Nações Unidas enviou no final de outubro para a Assembleia Geral das Nações Unidas um relatório, escrito pela Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia criada pelo Conselho dos Direitos Humanos, que descreve detalhadamente a política sistemática dos russos de ataque à população civil, ao longo de mais de 300 km do rio Dnipro.
Esta Comissão concluiu que estes atos são uma ação deliberada e planeada do exército russo, e não um abuso ocasional de soldados tresloucados. Constituem crimes contra a humanidade: os ataques sistemáticos visam civis, casas e outros edifícios, pontos de distribuição humanitária e infraestruturas energéticas que abastecem a população. Atingem equipas de resposta a emergências, incluindo ambulâncias e bombeiros, desprezando a especial proteção que lhes é conferida pelo direito internacional humanitário. Os moradores das localidades afetadas descrevem as suas condições de vida como insuportáveis, e a larga maioria já abandonou a região.
A impunidade com que o exército russo atua vê-se também pelo facto de, no dia 14 de outubro, não só ter atacado um comboio humanitário das Nações Unidas, na região de Kherson, como de ter tido o descaramento de publicar um vídeo com imagens desse ataque.
Infelizmente, este safari de caça aos humanos tem muito pouca visibilidade na imprensa internacional e nos media portugueses.
É certo que quase quatro anos de guerra levam a uma certo adormecimento dos nossos sentidos, mas espero que o assassinato deliberado da avó Lora, a andar sozinha na estrada apenas acompanhada por duas das suas cabras, pelo menos nos mantenha ativa uma absoluta rejeição do horror da guerra e da selvajaria sem limites da agressão russa, que já provocou mais de um milhão de vítimas e mais de dez milhões de refugiados.
(foto de NYPost e Zarina Zabrisky)
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