Império Russo no abismo

(texto publicado no Diário de Coimbra de 5 de julho de 2023)

Estamos a assistir ao fim de mais um império, desta vez o império russo. É um momento com enorme significado histórico. O império colonial russo é diferente dos impérios britânico, espanhol e português por não ser mediado pelo mar, tendo resultado de conquistas terrestres que duraram séculos, mas isso não o impede de ser, também, um império. Vladivostok, por exemplo, o grande porto russo do Pacífico (Haishenwai na designação chinesa), apenas foi cedido à Rússia pela China em 1860, através da Convenção de Pequim. A Rússia aproveitou a fragilidade da China, que acabava de ser derrotada pelo Reino Unido e pela França na segunda guerra do ópio, para impor essa cedência territorial. Foi nessas guerras que os britânicos obtiveram Hong Kong. De onde já saíram, como é sabido. 

Acredito que o respeito pela liberdade individual e, portanto, pela liberdade dos povos, vai levar ao fim dos impérios. A agressão russa contra a Ucrânia é mais um episódio desta evolução histórica. É a luta pela liberdade individual, só possível num país democrático, que faz a diferença nesta guerra - de um lado, os ucranianos estão a defender, com unhas e dentes, a sua liberdade; do outro lado está uma potência muito maior, agressora, que precisa de obrigar os seus soldados a lutar, pois uma larga parte destes não o quer fazer. 

Os sinais da decadência do império russo são numerosos. Saliento a decisão, já com muitos anos, de retirar ao Estado o monopólio da violência ao permitir a criação de inúmeros exércitos privados, de que os Wagner são apenas o exemplo mais conhecido. Um Estado saudável não abre brechas no seu domínio exclusivo sobre as forças militares; se o faz, numa perspetiva de dividir para reinar e para poder intervir clandestinamente no exterior, é porque já não sente força para manter um braço militar coeso. Mesmo as Forças de Segurança Russas, dependentes do Estado, são muito fragmentadas; para além das Forças Armadas que dependem do Ministério da Defesa há muitos outros corpos, com particular destaque para as forças do FSB (o Serviço Federal de Segurança, que é o principal sucessor do famoso KGB soviético), que constituem também verdadeiros exércitos alternativos. 

Dividir para reinar é uma estratégia com muito perigos, pois os equilíbrios de forças que mantêm as várias fações sob controlo podem desfazer-se rapidamente e levar à desordem, à guerra civil e à queda do sistema. É o que mostra a recente rebelião relâmpago dos Wagner, que chegaram às portas de Moscovo quase sem resistência, obrigando Putin a ceder e dar-lhes imunidade ao final do dia, apesar de nessa manhã os ter declarado traidores à pátria. 

A imagem de homem forte de Putin ficou enormemente abalada, mas muitos há que consideram que ele não ficou suficientemente enfraquecido para cair. Concordo que a rebelião dos Wagner, só por si, não é suficiente para derrubar o regime de Putin, mas é preciso ter em conta que a guerra continua, e a Rússia está a perdê-la. 

Os níveis astronómicos de corrupção no Estado Russo (de tal forma que a Rússia parece ser gerida por gangs mafiosos) afetaram decisivamente a eficácia das suas forças armadas, quer por muito material não ter qualidade, quer por os oficiais terem sido escolhidos por pertencer aos grupos dominantes, e não por serem militares competentes. Os militares competentes são muito inconvenientes, pois resistem aos roubos pelos corruptos, e foram sendo, portanto, afastados. A purga a que Putin se está a dedicar agora, na sequência da rebelião, só vem piorar a incapacidade do exército russo. 

A verdadeira questão é: conseguirá o enfraquecido Putin sobreviver a uma clara derrota da Rússia na Ucrânia? Eu penso que não. Ele pode esbracejar à vontade, numa tentativa de inverter o processo histórico em curso, mas as forças em jogo já ultrapassam a sua capacidade de manobra. 

Depois da derrota, a Rússia terá de fazer um exame de consciência profundo, como fizeram a Alemanha e a Itália depois da segunda guerra mundial. A Rússia terá de assumir-se como um país sem ambições expansionistas. E muitos dos povos subjugados, atualmente integrados no Império Russo, vão seguramente querer tornar-se independentes. Lembremo-nos da Chechénia. 
 

 
Ficheiros
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